Spray aos baldes
Historiador diz que a polícia da ditadura militar era menos violenta que a atual PM carioca - transformada, segundo ele, em guarda do poder
05 de outubro de 2013 | 15h 37
Felipe Werneck - O Estado de S. Paulo
RIO - Desde junho, o professor titular de História
Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira da Silva acompanha de
perto as manifestações no Rio. Ele prepara com o documentarista Eryk
Rocha, filho de Glauber, um filme sobre o que acontece nas ruas. Na
terça, porém, sua proximidade com o tema chegou a deixá-lo sem
respiração. Silva recebeu um jato de pimenta de um spray gigante,
recente aquisição da Polícia Militar, e precisou tirar a camisa e cobrir
o rosto para se proteger das bombas de gás lançadas pelos policiais na
Cinelândia.
Marcos de Paula/Estadão
'O jato parecia de extintor. Pus a camiseta na cara', diz o professor
O professor diz que o Rio virou o epicentro dos protestos no País por
ser uma cidade essencialmente de classe média e porque houve total
falta de sensibilidade das autoridades e perda de governabilidade no
Estado. Também afirma não temer comparações entre o que ocorre hoje e os
protestos estudantis do período militar: "A polícia da ditadura era
menos violenta do que a polícia do governador Sérgio Cabral".
Especializado em história social, com pós-doutorado na Alemanha,
Silva criou o Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ e foi
subsecretário de Educação no governo Brizola, na década de 1980. Conhece
bem a causa dos professores, em greve há 51 dias. Para ele, o plano de
cargos e salários da categoria do prefeito Eduardo Paes é "absurdo",
assim como sua aprovação por uma Câmara de Vereadores sitiada. "Me deixa
perplexo que o Legislativo não tenha tido pudor em continuar legislando
com a rua tremendo de bombas."
O refluxo da maré
"Está claro que o Rio virou o epicentro das manifestações. Embora
tenham começado em Porto Alegre e explodido em São Paulo, as maiores
ocorreram no Rio. Teve um refluxo, mas nunca parou. E abriu-se um
período de greves setoriais. A bancária é muito forte. O Rio centralizou
isso porque, em primeiro lugar, é uma cidade de classe média, de
funcionários, ao contrário de São Paulo, com base operária. Em segundo,
porque houve total falta de sensibilidade e perda de governabilidade. A
qualquer momento outra categoria pode explodir. Além disso, o Rio se
tornou uma das cidades mais caras do mundo, com especulação imobiliária
enorme, favorecida pelo governo. É possível que o governador, quando
deixou black blocs e moradores de rua quebrarem muito em julho, tenha
tentado afastar a classe média do movimento. Agora a coisa voltou. Outro
elemento virou clamor público. Quando o Choque entrou na terça, a
população gritava: "Cadê o Amarildo?". O nível de desmoralização é muito
grande.
Secundarista, professor, universitário
"Falaram que havia mascarados. Vou te dizer: eu pus a camiseta na
cara. Recebi um jato de pimenta que parecia de extintor, um troço
industrial. A sensação é de paralisia respiratória. A maioria dos que
tinham algo no rosto estava sem camisa. Era proteção contra o uso
indiscriminado de bombas. Havia black blocs, mas não estavam quebrando.
Depois duas agências bancárias foram destruídas, mas a PM já batia
muito. Era uma reação. A maioria absoluta era de secundaristas,
professores e universitários. Não tenho relação pessoal com o Black Bloc
nem quero ter. Mas houve uma inflexão dos black blocs, uma mudança na
atuação.
Casa sem pudor
"Tanta repressão, só vi uma vez na Bolívia e outra em Beirute, mas
nunca no Brasil. Foi brutal. Me deixa perplexo que o Legislativo não
tenha tido pudor em continuar legislando com a rua tremendo de bombas. A
função da PM foi de uma guarda pessoal do poder convocada para cumprir
não a lei do Estado, mas a vontade do dirigente. Fuzileiros navais
fizeram o controle de multidão no Haiti, em situação bem mais difícil,
sem esse tipo de ação. Quando o Choque entrou na Rio Branco e foi vaiado
intensamente, deram tiro de escopeta para o alto. São funcionários
públicos agindo como pretorianos do governador e do prefeito.
O PT e a guarda pretoriana
"É interessante ver o PT se transformar em partido que apoia o uso de
guarda pretoriana para votar uma lei. O que o Rio está mostrando é que o
PT perdeu as ruas. Se a oferta de um ministério ao Cabral se
configurar, fica claro o total desdém da Dilma. Seria suicídio político.
Velho é o poder
"Lamentei que dois amigos, oriundos do PC, tenham dito que black
blocs fazem o jogo da direita. É o que se falava na ditadura. Se nos
anos 1970 eu brigava contra a PM e agora continuo brigando, sou jovem.
Quem é velho é o poder. Estive em manifestações na Cinelândia em 1973 e
74. A polícia era menos violenta. Estou falando sério. A polícia da
ditadura tinha mais critério e era menos violenta do que a polícia do
Cabral."