A repórter da Rede
Record Fátima Souza foi a primeira pessoa a falar no PCC, em 1997,
quando era da TV Bandeirantes. Ela não foi ouvida. O governo fez
questão de desmenti-la publicamente. Fátima faz, a esse respeito,
críticas severas ao velho conluio da mídia com autoridades. E explica a
razão prática disso:
“Você saber que existe
alguma coisa errada, mas fingir que não vê para conseguir manter sua
fonte e ter as informações em primeira mão. Nesse sentido, você vê
pouca matéria contra a polícia, mostrando a realidade da polícia, o
envolvimento da polícia com os bandidos, o que é uma coisa pouco
questionada em São Paulo e no Rio, como se fosse normal. São poucos os
repórteres que fazem matéria de polícia e não para a polícia”.
Fátima diz que o Fantástico da
Rede Globo, ao fazer sua primeira reportagem sobre o PCC, apresentou o
assunto como inédito, sem dar o devido crédito à Bandeirantes. São
momentos em que o marketing desbanca a consciência profissional e
intelectual.
Num período em que os
dois lados, novo governo do estado e bandidos, se estudam – nenhum
preso paulista foi enviado para presídio federal e até esta
sexta-feira, 12 de janeiro, não houve novas ondas de ataques como os de
maio, julho e agosto de 2006 –, Fátima diz que o problema maior pode
estar não dentro, mas fora das cadeias:
“Hoje, você tem uma
coisa muito alarmante do PCC, mais do que o PCC na cadeia, é o PCC aqui
do lado de fora. Nós tivemos ataques aqui em maio, na maior cidade do
país e, de repente, você via brotar PCCs de todos os cantos. Camicases
saindo às ruas das favelas, dos bairros, de todos os pontos de São
Paulo, dispostos a atacar e a seguir uma liderança”.
Fátima Souza lançará em março o livro PCC, A Facção.
Ela é jornalista formada pela Fiam. Começou na TV Gazeta, passou para o
SBT, depois foi da TV Cultura. Trabalhou durante 13 anos na Band, onde
fez as principais matérias sobre o PCC. Ficou alguns meses no Diário de S. Paulo, depois passou seis meses dedicada ao livro. Agora está na Record.
Eis a entrevista.
Na literatura sobre
o PCC existem, para simplificar, duas linhas que se contrapõem. Uma
coloca a ênfase na responsabilidade do Estado, que não cumpre suas
obrigações legais nas prisões, transformando-as em masmorras infernais,
e suas obrigações relativas ao funcionamento do Judiciário. Outra faz
basicamente o discurso de “lei e ordem”, supõe que os problemas estejam
na fraqueza da autoridade diante do criminoso, ou até cumplicidade
criminosa com ele. Qual é sua visão?
Fátima Souza – Virou
um sonho escrever esse livro, porque eu acho que essa história do crime
organizado tem que ser registrada, contada, escrita e divulgada. O que
estava acontecendo em São Paulo era uma coisa atípica, não existia
antes. Existia uma organização no crime, mas não o crime organizado.
Era diferente.
Tinha lá os Serpentes
Negras, que ameaçaram fazer isso. Erroneamente, algumas pessoas
escreveram que o PCC vem da idéia dos Serpentes Negras. Não é verdade.
Os integrantes que fundaram o PCC nem sequer conheciam os Serpentes
Negras. Então, o PCC nasceu dentro da prisão em parte por aquilo que
você acabou de falar: “Bota os caras lá, e daí?”
Só que eles, malandramente, num dado momento, viram que aquilo tinha dado a eles uma plataforma...
F.S. – Malandramente
eles viram que aquela massa estava na mão deles mais fácil do que eles
imaginaram. Então, passaram daquela bandeira inicial de lutar pelos
direitos dos detentos, o que eles mesmos fazem, ninguém faz. E, de
repente, passaram dessa união para ter melhores condições nas cadeias
para ter melhor tráfico de drogas, para matar os desafetos, para montar
uma organização inicialmente dentro da cadeia, com o domínio deles.
Eu decidi escrever esse livro porque eu fui a primeira repórter a denunciar a existência do PCC, em 1997.
Quando ele tinha quatro anos de idade...
F.S. – Sim, quando ele tinha quatro anos de idade e ainda não era de conhecimento público.
Nunca tinha sido escrita nenhuma linha no jornal sobre isso?
F.S. – Nunca tinha sido escrita uma linha sobre o PCC em nenhum lugar. Nem jornal, nem TV, nem revista.
Mas ele não tinha lançado o manifesto de fundação, em 1993?
F.S. – Não, o manifesto eu lancei na TV, pela primeira vez, na Band. O manifesto só veio depois da minha primeira reportagem.
Explique como foi, por favor.
F.S. – Eu
recebi o manifesto pelo correio. Quando eu coloquei a primeira
reportagem no ar, mostrando que existia atrás das grades uma
organização, isso aconteceu depois de uma rebelião em Sorocaba, no
interior de São Paulo, numa época em que as chefias ainda mandavam
cobrir rebelião porque não era tão comum ter. Rebelião era matéria, eu
fui cobrir essa rebelião e vi que tinha uma coisa diferente. Tinha um
preso que era articulado, ele comandava essa rebelião, dava ordens e os
presos obedeciam de uma forma completamente diferente das rebeliões
confusas que eu já tinha visto. "Aí tem", eu pensei. “Quem é esse
cara?”, perguntei para um agente penitenciário, e ele me respondeu: “É
o Macalé”.
Passou um tempo e eu
pedi uma autorização para um juiz, dizendo que queria fazer uma matéria
sobre a vida dos presidiários e, claro, escolhi o Macalé para ser meu
personagem. Eu queria saber o que tinha acontecido naquela rebelião.
Então, o Macalé, em 1995, foi o cara que me deu a dica.
Quando fui
entrevistá-lo, ele me disse que havia uma organização atrás dos
presídios que, se quisesse, poderia paralisar os outros presídios. Eu
saí de lá achando que ele estava contando uma coisa legal, porque era
uma organização que ninguém conhecia. Ele não me deu o nome, eu
perguntei a ele e ele disse: “Não estou autorizado ainda a falar esse
nome, em breve vocês vão saber”. É claro que, como repórter, aquilo me
aguçou e eu fui atrás. Comecei a perguntar para os parentes, para
outros presos, tudo quanto é preso já tinha celular na época.
Depois que eu
entrevistei o Macalé, procurei a minha chefia na redação e falei: “Está
acontecendo isto: aquele preso que eu falei para vocês me disse que tem
uma organização por trás dos presídios, que eles estão absolutamente
organizados, que se eles quiserem eles param os presídios, não quis me
dar o nome dessa suposta facção e eu nem posso garantir para vocês que
existe, porque às vezes o cara inventa, conta lorota, quer crescer
demais em frente à câmera, mas eu quero a liberdade de vocês para ir
atrás dessa história”. E meus chefes deram.
Então, entre as matérias
do dia e os acontecimentos da cidade, eu continuei investindo nisso. Em
1996, eu já tinha material suficiente para colocar a matéria no ar
dizendo que existia uma facção criminosa, já com o nome PCC, porque com
essas pesquisas que eu fui fazendo, dessas conversas com mulheres de
presos, agentes penitenciários, diretores de presídios, outros
detentos, a palavra PCC apareceu para mim em um papelzinho que era, na
verdade, uma ameaça de morte. Esse papel foi interceptado dentro do
Carandiru e o cara escreveu para o outro: “Você vai morrer”, e embaixo
vinha “PCC”. Um agente penitenciário me chamou, entregou esse bilhete e
falou: “Olha, acho que é essa facção aí que você está caçando”.
Eu fiz uma matéria
robusta, de oito minutos, e a gente colocou no ar na Band. Pela
primeira vez a palavra PCC apareceu no cenário. O governo negou,
obviamente. O secretário da administração penitenciária, Benedicto
Marques, chegou a dar uma entrevista na Jovem Pan dizendo que eu estava
inventando notícia para ter ibope, que o que eu tinha falado era uma ficção e não uma facção.
Isso me deixou muito brava. Os próprios colegas do mercado tiraram o
maior barato da minha cara: “E aí, cadê o PCC, tá inventando notícia
agora?”
Na época, o único colega
da imprensa que levou a sério isso e decidiu ir atrás foi o Josmar
[Jozino], que sabia como eu trabalhava e que não estava inventando uma
história.
Nesse episódio nós podemos ver com clareza como a mídia tende a acompanhar o discurso da autoridade...
F.S. - Aquele
foi um momento muito decepcionante para mim, porque a gente não está
falando só da mídia, a gente está falando de pessoas que me conheciam,
conheciam o meu trabalho, sabiam como eu trabalhava e se curvaram à
palavra do então secretário e depois do Mário Covas.
O governador entrou ao
vivo com o Zé Paulo de Andrade, porque a Rádio Bandeirantes abraçou
também e eu passei a fazer matéria para a TV e para o rádio. O Zé Paulo
mandou ligar no meu celular e a gente fez uma conversa a três no ar e o
Mario Covas foi gentil, dizendo que eu era uma grande repórter, que ele
gostava muito das minhas matérias, mas que, no caso, alguém me teria
levado ao engano. Não foi tão grosso como o Secretário, mas ele disse:
“Alguém te levou ao engano. Essa facção não existe. Eu já falei com o
meu secretário, com diretores de cadeia, então a população pode ficar
sossegada que isso é uma invenção”. Eu me lembro de ter dito:
“Governador, o tempo vai dizer. Eu acharia mais sensato o senhor ir
atrás dessa história e acabar com ela enquanto é pequena do que fingir
que não existe”. Ficou até um bate-boca entre mim e o Covas lá na
rádio, mas eu tinha certeza do que estava falando. A partir daí, eu
passei a fazer várias matérias. Passadas duas semanas dessa reportagem
que eu coloquei no ar, me chegou via Sedex, sem remetente...
Como é que pode chegar Sedex sem remetente?
F.S. – Você
pode pôr remetente falso, como era o caso. Não existia aquele
remetente, não era verdadeiro. Então eu recebi aquele material e era o
estatuto do PCC, aquele primeiro, escrito a mão.
Mas ele veio escrito a mão?
F.S. – Escrito a mão.
Copiado na cadeia por alguém.
F.S. – Não,
acho que foi o estatuto inicial. Era ainda o primeiro estatuto que foi
feito e distribuído entre eles, com a letra do Geléia, na época.
Mas o mesmo papel? Aquele papel de 1993 estava circulando ainda e foi mandado...
F.S. – Estava circulando numa folha de papel almaço que era xerocada e distribuída. Eles dizem que até hoje existe o original disso.
Pensei que a senhora estava com o original.
F.S. – Não,
o original ainda estaria com algum detento ligado à primeira chefia do
PCC. E junto [ao Sedex], uma carta. Escrita a mão, canetinha Bic,
explicando o que era o PCC, que era uma organização que tinha a
intenção de defender os direitos dos presos.
Passados dois dias que
esse material chegou, me ligaram na redação e eu fui atender. Era uma
mulher que se identificou como mulher de um dos presos líderes do PCC
na época e falou que o marido dela é que tinha me enviado o material,
que o remetente não era o verdadeiro.
Eu não pus logo de saída
o material no ar. Eu queria buscar mais para ver até onde aquilo era
verdade, se era um trote, quem tinha mandado, e aconteceu da mulher me
ligar. Ela disse que o marido tinha mandado, que era o estatuto
original feito no presídio de segurança máxima de Taubaté, onde o PCC
nasceu, e a gente colocou no ar. A partir daí, acho que eu fiz mais
umas duas mil matérias sobre o assunto e outras pessoas começaram a
fazer também.
Eu me lembro de um
episódio muito legal que eu coloco no livro, muito divertido. Passado
um ano da minha insistência em dizer que o PCC existia, teve uma outra
rebelião, não no presídio de segurança máxima, no outro, de
Hortolândia, e eu fui cobrir essa rebelião. Pela primeira vez, o PCC
mostrou o nome dele publicamente depois das minhas reportagens. Pegaram
um lençol e escreveram “PCC” e hastearam no topo da cadeia, no exato
momento em que o mesmo secretário da Administração Penitenciária, João
Benedicto de Azevedo Marques, chegava com seus seguranças para tentar
negociar o controle da rebelião.
Quando o secretário
chegou todo mundo foi para cima dele e os caras hastearam a bandeira.
Então eu perguntei: “Secretário, aquilo lá também é invenção minha?”
Ele olhou e respondeu, gravando, inclusive: “Minha filha, bandeira
existe até em escola de samba”. Eu acho que esse episódio retrata muito
o descaso do governo com o que estava acontecendo nas cadeias.
Nessa altura do campeonato, a mídia, seus colegas, estavam...
F.S. – Foi nesse dia, com a bandeira hasteada do PCC, que os colegas deram matéria sobre a facção.
A senhora se lembra em que dia ou ano foi isso?
F.S. – Já
era 1997. Foi a primeira vez que a mídia acreditou no que eu estava
falando e começou a falar de PCC, do que seria o PCC. Depois dessa
bandeira, o Fantástico fez uma matéria, acho que um ano e
meio depois da minha denúncia, viu que eu não estava mentindo, foi
atrás e fizeram num tom de “O Fantástico descobre”, como se
fosse uma total novidade, como é comum da Globo, não aceitar que tomou
furo de ninguém. Eles fizeram a matéria como se fosse uma coisa
absolutamente nova, que ninguém houvesse falado, como se a TV
Bandeirantes não existisse, durante um ano, colocando matérias no ar.
Como a senhora
analisa a atitude da imprensa, da mídia? O Observatório da Imprensa tem
dito sistematicamente: uma coisa não existe desligada da outra, nem
bandido, nem autoridade, nem nada. A mídia é um tecido que liga tudo
isso. Não tem nem como não ser assim. Como a senhora analisa a atitude
da mídia em face dos bandidos e das autoridades?
F.S. – Na
verdade, eu também faço parte da mídia e, em alguns momentos, mesmo sem
querer, a gente acaba errando. Eu acho que o maior problema é quando
você, por querer, acaba errando.
O que isso significa?
F.S. – Significa
você, de alguma forma, compactuar com as autoridades. Você saber que
existe alguma coisa errada, mas fingir que não vê para conseguir manter
sua fonte e ter as informações em primeira mão. Nesse sentido, você vê
pouca matéria contra a polícia, mostrando a realidade da polícia, o
envolvimento da polícia com os bandidos, o que é uma coisa pouco
questionada em São Paulo e no Rio, como se fosse normal. São poucos os
repórteres que fazem matéria de polícia e não para a polícia.
No episódio do PCC, é
até deselegante para mim, que também faço parte da mídia e também já
errei, o que a mídia fez foi cometer um grande erro. Não é “super”-ego,
não, mas acho que se eu tivesse sido ouvida naquele momento, se o resto
da mídia tivesse dado essa força para que o PCC estivesse rapidamente
em todos os jornais, revistas e rádios, o governo teria se mexido,
teria trabalhado com mais empenho, não teria fingido que era
simplesmente um problema que não existia. Tenho certeza absoluta que se
o PCC tivesse sido combatido naquele momento, em que ele tinha 700
homens, ele não chegaria a ter 130 mil.
A senhora acha que ele tem 130 mil?
F.S. – Absoluta certeza.
A informação que eu
tenho não é essa. É de que ele tem um certo número sob controle, até
compulsório, em casos em que a pessoa, se não obedecer, pode sofrer
represálias, mas não existe essa coisa de ter um exército de 130 mil
homens.
F.S. – O
Estado tem tão pouco domínio sobre o PCC hoje como tinha no início
dele, quando desprestigiou a realidade. Hoje, você tem uma coisa muito
alarmante do PCC, mais do que o PCC na cadeia, é o PCC aqui do lado de
fora. Nós tivemos ataques aqui em maio, na maior cidade do país e, de
repente, você via brotar PCCs de todos os cantos. Camicases saindo às
ruas das favelas, dos bairros, de todos os pontos de São Paulo,
dispostos a atacar e a seguir uma liderança. Isso me parece mais
organizado que o Estado, que não tem liderança sobre sua própria
polícia. Não há essa organização dentro da polícia, mas há entre os
bandidos.
O próprio Estado, após
os ataques, demorou a reagir. No 17° ataque, eu estava na porta do DEIC
e o diretor do DEIC, Godofredo Bittencourt, olhou para minha cara e
disse: “Não há nada que comprove que há relação dos ataques com o PCC”.
Isso é não enxergar
absolutamente nada ou fazer um jogo sujo, como fizeram quando morreram
111 e anunciaram que eram 11 até às cinco da tarde, quando terminou a
eleição [refere-se ao massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992].
O diretor do DEIC, que é o departamento responsável pela investigação
do PCC, dizendo sobre o 17° ataque na cidade de São Paulo, que já
começava a ficar assustada, que não havia prova nenhuma de que era o
PCC ou, muito menos, que houvesse relação entre os ataques, que
poderiam ser coisas isoladas, é, no mínimo, uma piada.
Existe aí a famosa
“dissonância cognitiva”, um personagem é o Godofredo Bittencourt, na
porta do DEIC, dizendo para a repórter que não tem nada disso e o
outro, no Congresso Nacional, dizendo que é isso mesmo e pior até. O
que acha disso?
F.S. – Para
dar um exemplo, jornalisticamente falando, se você mandar um jornalista
ir fazer uma matéria, o cara pode trazer um grande resultado, se
empenhar, ir lá, fuçar e trazer uma boa matéria, ou pode ir e fazer o
trivial: ouvir autoridade, passar em frente à delegacia, fechar o
material dele e sair cedo da redação.
No caso do Godofredo
Bittencourt, ele fez uma materiazinha e saiu cedo da polícia. Ele não
fez uma grande investigação sobre o PCC. Então, a [Delegacia de] Roubo
a Banco investigou e quando eles levaram a sério, e durou, custou
muito, porque o PCC só foi levado a sério pelo Estado e investigado
pelo Deic em 2002, quando aconteceu a megarrebelião.
De 1997, quando eu
detectei a facção, a 2002, faça as contas para ver quanto tempo passou
para que realmente eles falassem: “Agora vamos criar uma delegacia para
cuidar do PCC”, “O PCC parou 30 presídios, então agora não dá mais pra
dizer que ele não existe”. Só que, quando eles disseram “Agora vai ser
sério”, eles tiveram sete anos mais os dois em que eles já existiam
para se articular, crescer, ter liderança, telefone na cadeia. Na
megarrebelião, eu fiquei online com o César em um celular e
com o Geléia, no outro, me passando informações: “Caiu cadeia tal.
Agora nós vamos derrubar tal cadeia. Conta dez minutos que está
rebelada”. E, em 10 minutos, estava rebelada. O PCC já era grande,
tinha celulares, caixa, rifa, tudo o que agora todo mundo fala.
A polícia demorou para
se tocar da existência. Em 2002, montou essa delegacia e passou a
trabalhar, catalogar, saber quem era quem, quem eram os líderes. Houve
um espaço de tempo muito grande para que isso acontecesse. Quando eu
digo que eles investigaram de forma não total, é exatamente isso. Ali
já era tarde, já tinha uma facção grande, um domínio grande dos presos,
o PCC já era grandíssimo aqui na rua, com mais de três mil homens. A
batalha foi mais difícil.
A senhora concorda
com a visão de que existe um grupo de jornalistas que se aplicam, se
empenham em mostrar que o problema existe, é grande, tem que ser
encarado? Eu noto algumas matérias que têm esse sentido. Por exemplo,
outro dia saiu uma matéria que dizia “PCC já treina esquadrão feminino”.
F.S. – Eu
fiz essa matéria do esquadrão feminino do PCC em 2003. Em 2003, o PCC
começou a dominar as cadeias femininas de São Paulo, a ter
representantes femininas. A Maria do Pó se aliou ao PCC, a Loira se
aliou ao PCC. Começou a ter nomes de bandidas famosas que se aliaram ao
PCC e a ala feminina começou a crescer muito. Hoje, nas cadeias, você
tem as rebeliões femininas exatamente como as masculinas, com o PCC nas
bandeiras, pintado no chão, mas ainda são subordinadas ao comando
masculino, porque só tem homens na chefia do PCC. Hoje não existe mais
essa distinção. Não é mais novidade as mulheres serem do PCC.
As mulheres, aliás, têm
grande importância para o PCC. Tem um capítulo do meu livro que fala
sobre isso, a importância que elas tiveram no leva e traz, as mulheres
dos presos levando e trazendo informação.
E o Ministério Público? Teve a mesma atitude que a polícia?
F.S. – O
Ministério Público, tão logo eu fiz a denúncia da existência dessa
facção, me procurou através do Dr. Gabriel Inela, pedindo todos os
detalhes possíveis da situação. Eu entreguei para ele cópia de tudo, o
dossiê que eu tinha com mais de quinhentas páginas e ele foi adiante,
visitou as cadeias, se certificou da existência da facção e enviou a um
juiz, pedindo abertura de inquérito, e o juiz, que disseram ser amigo
do governador, mandou arquivar o material. Então, ele até tentou, mas a
Justiça também não acreditou e o material foi arquivado.
Depois disso o Ministério Público ficou parado?
F.S. – O
Ministério Público tentou de novo, foi arquivado novamente e o que eles
fizeram depois foi dar o meu dossiê para a Globo para eles fazerem a
matéria no Fantástico.
Que matéria?
F.S. – Aquela
inicial de que eu falei. Então, só em 2002 o Ministério Público entra
de novo no cenário com o Dr. Marcos Christino, Roberto Porto, que
começam junto com a Polícia a investigar o PCC.
E como está hoje a imprensa? Está mais alerta, mais lúcida?
F.S. – Em
relação ao PCC, está, sim. Mais alerta, mais lúcida. Ainda tem alguns
repórteres que continuam sabendo que é importante a gente bater esse
martelo, já alguns não. Eu acho um absurdo, por exemplo, a Rede Globo,
a maior emissora do país, com o maior ibope, proibir dentro da redação
a palavra PCC. Eles não colocam mais essa palavra no ar. Eles tratam de
“quadrilha que atua nos presídios”, como se isso fosse resolver o
problema.
Isso é uma coisa
controvertida. Eu fiz um debate agora no Rio [a ser publicado nos
próximos dias no Observatório] e uma das pessoas, o ex-secretário do
Sistema Prisional de lá [Astério Pereira dos Santos], que é veterano,
disse que para ele era bom isso, mas ele estava falando do Rio. Disse
que os bandidos do Rio são tão carentes, tão miseráveis que eles
precisam desse reconhecimento de facções até para crescer um pouco.
F.S. – Eu
acho isso um discurso furado de um governo que quer esconder a
realidade. Tanto faz São Paulo, Rio de Janeiro. Há quanto tempo existe
o Comando Vermelho?
Há trinta anos ou mais.
F.S. – Pois
é, se você falar ou não falar deles na mídia, eles vão continuar
existindo, trabalhando na calada, nos morros. Sabe aquela história
“Quando alguém for seqüestrado nós não vamos dar a notícia”? Você quer
coisa mais cômoda para o governo do que se Silvio Santos for
seqüestrado a gente não der a notícia? Quer melhor presente para o
governo do que esse? Por que não? Porque coloca em risco a vida do
homem? Tudo bem, você pode não dar notícias da negociação, para não
colocar em risco a vida de quem está seqüestrado. Agora, fingir que não
há um seqüestro, omitir da população? [...Referência suprimida a um seqüestro em andamento...]
O que a gente ganha com isso? Vamos deixar a população ignorante porque
essa sempre foi a função do Estado? Então, eu pergunto: a Globo tratar
o PCC como “uma quadrilha dentro dos presídios” ajudou em quê, em
resultados práticos? O que a gente conseguiu não falando o nome deles?
Não é melhor a gente falar, mostrar para o público que existe, deixar a
sociedade saber da verdade?
E cobrar das autoridades...
F.S. – Para
as autoridades é absolutamente cômodo. Não se fala mais em PCC, a
população pensa que já não existe mais, que ele está fraco, quietinho
dentro da cadeia. E você sabe como é a classe média, se estiver na
cadeia, se estiver morrendo só lá dentro, tudo bem. O problema é quando
sai aqui para fora. Então, se o Estado fingir que essa facção está
dominada, que está só lá dentro dos presídios matando um ao outro, é
cômodo para eles que enganam a população aqui fora.
Em maio, quando o PCC
atacou, todo mundo dizia: “Óóó”. Caiu a ficha. O PCC existia há tantos
anos e ainda não tinha caído a ficha da população, porque era coisa de
preso, eles que se matem lá e nós não temos nada a ver com isso. Para o
governo é interessante continuar fazendo essa falsa imagem. Não faz nem
um ano que nós tivemos aqueles atentados terroristas aqui em São Paulo
e o PCC tem capacidade para fazer de novo a hora que quiser.
Eu tenho certeza que o que houve foi uma negociação que está em vigência até agora.
F.S. – Com certeza.
Inclusive esse
casamento do Marcola, que é controvertido, porque tem gente que diz que
é normal, tem gente que diz que é anormal, mas para mim sinaliza
acordo, contemporização.
F.S. – É
verdade que já se casaram outras pessoas dentro do presídio e o próprio
Marcola, é o segundo casamento dele preso. No primeiro, ele estava
preso em Araraquara e casou com Ana Maria Olivatto, que também era
advogada [ela foi assassinada].
Tudo é uma questão de
postura, de ter mão firme ou não. Se eu sou o governo do estado,
poderia agir de duas maneiras: deixar o Marcola casar com propagandas
nos jornais, deixar a noiva entrar vestida de noiva e dar beijinho na
boca, trocar aliança, ou dizer: “Você quer casar, você casa no
cartório. Assina o papel e ponto. Isso aqui não é sua casa”. Pode até
ser normal, mas nós estamos falando de um líder de uma facção que pôs o
dedo na cara do delegado da [Delegacia de] Roubo a Bancos [Ruy Ferraz].
O Marcola falou para o Godofredo Bittencourt, dentro do Deic, quando o
Bittencourt foi pedir “Marcola, pelo amor de Deus, vamos parar com
esses ataques”: “Sinto muito, doutor, agora não dá mais para voltar
atrás”. É desse cara que nós estamos falando.
O argumento que eu
ouvi e que me parece muito sério é que pode até ser normal que haja
casamentos no sistema prisional, mas que isso não andou saindo nos
jornais, como no caso de Marcola.
F.S. – Você lembra de ter visto algum outro casamento nos jornais?
Eu não me lembro.
F.S. – No
meu livro, eu conto alguns casamentos, do Geléia, que casou dentro da
Casa de Custódia de Taubaté, trocou alianças, mas não era o chefe de
uma facção criminosa. Era o Geléia, preso comum e não saiu em nenhum
jornal.
Pelo fato de eu ter sido
a primeira a denunciar e a colocar no ar, eu passei a ser procurada
pelos integrantes do PCC. Durante muitos anos eu falei com vários deles
pelo telefone, que é a coisa mais fácil dentro da cadeia. Eu conto
esses fatos curiosos, os episódios engraçados, tristes, mas sempre com
realidade, nome, data. Só posso te garantir uma coisa: no meu livro,
não tem absolutamente nada daquela ficção inicial do
secretário. Tudo o que está lá é absolutamente verdadeiro, é
absolutamente o que aconteceu, o que acontece. Ele é atual, vai até os
ataques de maio. Aliás, até os ataques de maio, julho e agosto do ano
passado. Já estou escrevendo o segundo, porque o PCC, como eu previa,
continua investindo. E tem material para o segundo livro.
Acessado e disponível na Internet em 17/10/2013 no endereço -
http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-gerais/2007/janeiro-2007/reporter-diz-que-autoridades-e-midia-ocultaram-pcc