MENSAGEM

"Eu não recearia muito as más leis se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação. A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Em dez anos a população aumentou e a Polícia Civil do Estado teve seu efetivo diminuído


Em dez anos, Estado perdeu 4.280 policiais civis

Pelos números atuais, cada investigador teria de solucionar 4 crimes por mês

11h15 | 18/11/2015

Mastrangelo Reino / EspecialSou da Paz: Ivan Marques diz que é necessário reforçar a investigação(foto: Mastrangelo Reino / Especial)
O déficit de policiais civis atinge todo o Estado de São Paulo. De dezembro de 2006 a setembro de 2015, o efetivo encolheu 13,5%, com a perda sem reposição de 4.280 homens. A diminuição ocorre sem trégua, ano a ano, há dez anos.
Atualmente, a corporação conta com 27,3 mil policiais. Em 2006, eram 31,5 mil. Se comparado com setembro de 2013, a perda foi de 1.005 homens.
Para efeito de comparação, no mês retrasado, a Polícia Civil tinha 8.952 investigadores - 1.399 a menos do que há dez anos.
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Levando apenas em consideração as estatísticas de roubo, homicídio, latrocinío e estupro só de setembro (33 mil ocorrências), cada investigador teria que solucionar um crime por semana para que a demanda não acumulasse. Se forem incluídas as ocorrências de furto, (82,4 mil) eles teriam que resolver o dobro.
Coordenador do Centro de Pesquisa em Segurança Pública da PUC-MG, Luis Flavio Sapori alerta que a aposentadoria intensiva de policiais civis sem reposição ocorre em todo o país.
“Os Estados priorizam o policiamento ostensivo e repressivo porque, principalmente, é mais visível para a população. Mas não basta ter uma Polícia Militar bem equipada, é necessário focar na investigação”, diz.
No Estado de São Paulo, o último crescimento da Polícia Civil ocorreu de 2005 para 2006, quando houve acréscimo de 650 policiais.

Ivan Marques, do Instituto Sou da Paz, alerta também para o envelhecimento do quadro atual de funcionários (ler abaixo).
Sigilo
Em vigor desde maio de 2012, a Lei de Acesso à Informação foi utilizada pela sociedade civil e pela imprensa, inclusive o A Cidade, para ter acesso ao efetivo policial de São Paulo, escancarando o encolhimento da Polícia Civil.

Após a divulgação dos dados, a Secretaria de Segurança Pública publicou em setembro do ano retrasado a portaria DGP 31/2013, que tornou os dados de efetivo sigilosos por cinco anos, pois são “imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado”.
Devido às críticas do sigilo em sua administração, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) revogou em 15 de outubro deste ano os atos sigilosos e criou uma comissão para reavaliar os casos. Quatro dias depois, o A Cidade solicitou o efetivo de Ribeirão e de todo Estado, dividido por departamento. Os dados do município foram negados, sob a alegação de que colocariam em risco a vida dos policiais. 
Polícia Militar se recusa a informar seu efetivo 
Enquanto a Polícia Civil voltou a informar seu efetivo, embora de forma parcial, a Polícia Militar mantém a postura, adotada desde dezembro de 2013 pela portaria PM 6/3/30/13, de ocultar seus dados.
Antes de a corporação decretar sigilo sobre seus dados, o A Cidade mostrou, em abril daquele ano que o número de habitantes de Ribeirão Preto havia crescido, proporcionalmente, cinco vezes o efetivo policial entre 2003 e 2013. 
Na ocasião, o município contava com 1.080 policiais militares - 36 a mais do que em 2013, uma alta de 3,4%. No mesmo período, a população ganhou 95 mil habitantes e aumentou 17,7%.
Além disso, um terço dos policiais militares em Ribeirão atuava em serviços administrativos, ou seja, sem participar diariamente do policiamento ostensivo nas ruas.
Após o governador Geraldo Alckmin (PSDB) revogar os atos sigilosos, em outubro desse ano, o A CIdade solicitou, pela Lei de Acesso à Informação, o efetivo da PM em Ribeirão, no CPI 3 (Centro de Policiamento do Interior) e no Estado e quantos atuavam em serviço administrativo.
Os pedidos foram negados em primeira e segunda instância, sob a alegação de que o governo estadual ainda não regulamentou quais dados perderam o sigilo. 
Análise - 'Apenas a repressão é enxugar gelo'
O que o Instituto Sou da Paz sempre ressaltou é que a priorização das investigações policiais é determinante para a redução da sensação de impunidade, que só ocorrerá após a identificação e prisão do autor da crime. Investir apenas na repressão é enxugar o gelo.  A diminuição do efetivo da Polícia Civil em São Paulo vem aliada ao aumento no número de roubos, que têm um nível de esclarecimento muito baixo. Efetivo esse, aliás, que está envelhecendo e se aposentando em volume cada vez maior, e sem reposição. Contingenciar recursos e não repor esse quadro é uma política de segurança pública equivocada. A desinstrumentalização da Polícia Civil, aliás, ocorre em nível nacional, e não apenas no Estado de São Paulo, o que é preocupante, pois há uma necessidade constante de reforçar o modelo de investigação. E São Paulo, que é considerado modelo para os outros estados, tem sua capacidade de investigação corroída com essa situação, levando-nos a prever um futuro pior. Ivan Marques, Diretor Executivo do Instituto Sou da Paz, ONG que há 15 anos discute Segurança Pública no país. Ele foi o palestrante do debate Morar do Agenda Ribeirão deste  ano.
Governo de SP culpa aposentadoria
A Secretaria de Segurança Pública culpa a aposentadoria compulsória dos policiais civis para explicar o déficit de efetivo. Em nota, a pasta diz que a redução do teto máximo de idade para os policiais em serviço, que passou de 70 anos para 65 anos devido à uma Lei Federal em 2014, “resultou na saída de diversos servidores”.
O comunicado não explica por que, por dez anos consecutivos, não houve reposição adequada de policiais. Segundo a nota, desde 2011 foram contratados 2.960 policiais civis.
Apesar da PM se negar a informar o efetivo, a SSP diz que todo o número de funcionários das polícias civil, militar e científica é público.
Arte / A Cidade

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

#PoliciaCivilizada ≠ A FARSA DO CICLO COMPLETO DE POLÍCIA


A farsa do debate do ciclo completo de polícia

Rafael Alcadipani*
13 Outubro 2015 | 21h 00
Artigo publicado originalmente no Estadão Noite
Chamou atenção na semana passada a presença de oficiais da Polícia Militar e delegados da Polícia Civil em um debate realizado na Assembleia Legislativa de São Paulo. Oficiais e delegados estavam em vários plenários da casa, divididos por uma faixa vermelha,  e trocando provocações que beiravam o insulto. Era um evento para discutir a adoção do 'Ciclo Completo de Polícia'. Os oficiais da PM defendem que o tal ciclo é uma das grandes soluções para os graves problemas da caótica situação da Segurança Pública no País. 
O ciclo completo de polícia se dá quando uma força policial lida com a ocorrência criminal, do momento em que ela chega ao local dos fatos até o instante em que o criminoso é preso. Ou seja, junta-se na mesma força policial a prevenção, a repressão e as investigações dos crimes. No Brasil, a PM é responsável pela prevenção e repressão e a Polícia Civil pela investigação. Há duas formas principais de ciclos completos. O primeiro é a atribuição de jurisdição policial por área geográfica. Por exemplo, uma polícia cuidaria de cidades acima de 500 mil habitantes e outra ficaria responsável pelas demais cidades. O segundo tipo seria por tipo de delito. Por exemplo, uma polícia lidaria com delitos menos graves e a outra com delitos mais graves. 
Num olhar desatento, a ideia de ciclo completo faz todo o sentido. Porém, uma análise mais detalhada do que está por detrás da proposta em discussão revela que estamos pegando uma boa ideia e a transformando em um monstro. O debate em prol do ciclo está sendo capitaneado pelos oficiais da PM, suas associações de classe e os seus deputados eleitos. É uma luta dos oficiais da PM travestida de algo que irá beneficiar a sociedade, mas que na realidade irá dar ainda mais poder para o oficialato das corporações. Os dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a PM do Brasil é a polícia que mais mata no mundo. Não que o policial não tenha que utilizar o poder letal quando necessário. É óbvio que sim. Mas é senso comum na sociedade que as PMs matam e exercem violências cotidianas contra a população, principalmente as mais vulneráveis. É praticamente impossível passarmos uma semana sem notícia de abusos cometidos pelas PMs do Brasil que pouco ou nada fazem para mudar a sua lógica de atuação. Dar o ciclo completo para as PMs no atual modelo é dar a possibilidade de que mais arbitrariedades sejam cometidas contra o cidadão. Isso sem falar que dentro das PMs, hoje, praças não são tratados como seres pensantes, mas como subalternos de uma lógica organizacional caduca.
Os defensores do ciclo completo dizem que este é o modelo utilizado nos países do 'primeiro mundo', mas esquecem de apontar que o modelo nunca vem sozinho. O ciclo completo em geral vem acompanhado de carreira única nas polícias e um controle externo efetivo da atividade policial, dois temas que as cúpulas das PMs se quer tocam. Há questões organizacionais importantes a serem consideradas. As PMs não possuem prática, não têm formação e não têm histórico de investigação de crimes. Via de regra, quando fazem isso, o fazem adotando a violência, a ameaça e a humilhação das pessoas. Para as PMs ter ciclo completo de polícia, elas precisariam mudar radicalmente a sua formação e a cultura organizacional que possuem hoje. Isso sem falar na péssima relação que as PMs constroem com as Guardas Municipais. Ter ciclo completo requer uma outra polícia da que temos hoje.
A ideia do ciclo completo como o grande salvador da pátria mascaras problemas importantes da segurança pública no Brasil. Primeiro, o sistema de justiça criminal é caro, burocratizado, distante do cidadão e atua, fundamentalmente, contra os pobres. É urgente desburocratizar e simplificar tal sistema, e isso pode ser feito sem uma mudança mais radical. Outro grave problema é que as penas alternativas não são efetivadas no Brasil e isso precisa ser mudado urgentemente. A investigação policial no Brasil está tecnologicamente defasada, é extremamente burocratizada e, em boa parte dos casos, é ineficiente. A necessidade de mudança é urgente, mas só pode ser feita com uma melhora expressiva da gestão das Polícias Civis, a redução do poder dos clãs internos, o aumento e a renovação do efetivo destas polícias e melhorias nos salários dos policiais. A Polícia Científica está praticamente destruída e precisa ser reconstruída urgentemente. Melhoras de condições de trabalho também são urgentes para os praças nas PMs. 
Gastamos muito e mal com segurança pública no Brasil. 
Podemos até pensar em ciclo completo de polícia, mas este debate não pode estar sequestrado pela lógica corporativista e não pode ser conduzido de maneira autoritária. Apenas uma força policial não pode conduzir o debate em oposição a outra. Reformas nas polícias são urgentes, mas temos que tomar cuidado para que o novo modelo não seja pior do que o anterior.
* Rafael Alcadipani é professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, EUA

Acessado e disponível na Internet em 14/10/2015 no endereço - 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

"Polícia de hoje só é boa para o crime organizado", diz procurador

"Polícia de hoje só é boa para o crime organizado", diz procurador

"Porque para o pobre, não é", diz Marlon Weichert, que completa: "Não precisa ser muito inteligente para perceber o modelo fracassado". O procurador acredita que federalizar não é suficiente. Para ele, a solução é a reforma no sistema
 
 
Jornal GGN - "A impunidade das graves violações de direitos humanos no passado estimula a continuidade desse padrão de violência pelo Estado", disse o procurador regional da República, Marlon Alberto Weichert, em entrevista ao GGN. O que significa que as chacinas de Osasco e Barueri que resultaram na morte de 19 pessoas, são resquícios de um "modelo fracassado" de polícia "treinada para matar". Para ele, a federalização das investigações de crimes cometidos por agentes do Estado não basta para frear a violência policial. A única saída para essas violações, disse o procurador, é a reforma da segurança pública brasileira.
 
Enquanto alguns especialistas acreditam que a solução para a violência policial seria retirar das mãos da Justiça Estadual as investigações, com o receio de serem arquivadas por influência dos próprios autores dos crimes, e transferí-las para o nível federal, o procurador-regional explica que o processo no MPF não é tão simples, e acredita que a ação não é suficiente para barrar outras chacinas.
 
"O instituto de deslocamento de competência para o nível federal já tem aproximadamente 15 anos que foi implementado, mas é muito tímido, porque funciona a posteriori. Tem que se esperar e provar que a Justiça Estadual foi incapaz de investigar e processar o caso no sistema Federal. O que, muitas vezes, é extremamente complexo porque não há mais como produzir as provas, muitas delas se perderam. O procurador-geral tem uma série de casos que atualmente está analisando relacionados a graves violações", explicou.
 
"Mas isso não vai resolver o problema. É uma pequena ponta. O problema da violência policial depende de uma redução drástica da impunidade, que é muito incentivador, mas sobretudo de uma reforma institucional do modelo de polícia brasileiro", completou.
 
No embate sobre a quem compete investigar esses crimes, Marlon criticou a tentativa da Justiça Militar de tomar para si ou mesmo interferir nas apurações. "Nesse caso de Barueri, não há nenhuma dúvida, nenhuma, de que a Justiça Militar é incompetente. Foram homicídios! A Constituição diz em letras garrafais: crimes dolosos praticados por militar contra a vida de civis é competência da Justiça comum. É um conflito só na cabeça de quem está lidando com isso, porque juridicamente a questão é muito cristalina", contestou.
 
E disse que a federalização, ainda que caminho possível, nunca resolveu o problema. "A solução é fazer uma polícia democrática. A polícia de hoje só é boa para o crime organizado. Porque para o pobre, não é", concluiu.
 
Polícia Brasileira
 
Marlon explica que se consolidou na Constituição o nosso modelo de polícia ditatorial, que continua vigendo graças ao apoio da bancada da bala e da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, setor conservador do Congresso "que cada vez mais se concretiza e se fortalece". Para ele, "não precisa ser muito inteligente para perceber" o fracasso do sistema para todos as partes.
 
 
"Se a polícia matadora, que a gente chama de mão dura, fosse boa para a Segurança Pública, não teríamos 60 mil pessoas sendo mortas por ano, um número absurdo de estupros e roubos acontecendo. (...) Os policiais sofrem com a violência e com a corrupção que têm nas corporações. Todo mundo que quer olhar para o problema com sinceridade, sem manipulação, sabe que está esgotado. Mas falta a coragem e a liderança para fazer uma discussão séria. A política criminal brasileira está fracassada, a meu ver", manifestou. 
 
Atira para matar
 
O procurador-regional da República recordou a história brasileira para não deixar dúvidas de que a Polícia Militar não é treinada para promover a cidadania, mas para combater o inimigo, ao contrário do que seria a polícia democrática que ele defende. 
 
"O que o militar sabe fazer? É treinado, e bem treinado, para combater o inimigo. Não é à toa que atira para matar. Porque isso é um treinamento militar. Agora, uma polícia democrática passa de uma premissa distinta que é promover cidadania".
 
Ele lembra que o atual modelo foi incorporado na ditadura para "combater a dissidência política" e para manter o "controle sobre os trabalhadores nas demandas por direitos sociais". Mas com a democratização, o fim da perseguição política não caminhou com o fim do modo de operação do policial, de que "está autorizado pelo Estado a ser um repressor com alta violência, protegendo-o com a sua impunidade e ocultando seus crimes".
 
Entenda a história do papel da polícia no Brasil, contada pelo procurador:
Arte: Angélica Pinheiro / Jornal GGN
Diante desse cenário, Marlon Alberto Weichert alertou: "Isso permanece como cultura, como estrutura, e pior, permanece como quadro normativo".
 
Origem da impunidade
 
Como um dos procuradores mais atuantes do Ministério Público Federal (MPF) nas investigações dos crimes cometidos pela ditadura, Marlon lida com as dificuldades de a Justiça brasileira não se posicionar diante da condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no revés da vigente Lei da Anistia. 
 
"A condenação [dos casos Gomes Lund e Araguaia] foi pela impunidade em relação aos crimes de graves violações de direitos humanos, de desaparecimento forçado e de execução sumária cometidos durante a ditadura militar. (...) Teoricamente, toda a doutrina de direito internacional reconhece que essa decisão é de cumprimento obrigatório e vinculante para todas as autoridades e todos os órgãos brasileiros", disse.
 
Entretanto, o Supremo votou pela manutenção da Lei da Anistia em abril de 2010, e até hoje entende que esses crimes são passíveis de prescrição. A consequência, entende o MPF, é que a impunidade no passado estimula o que estamos assistindo hoje, com a falta de respostas penais para as chacinas. 
 
Marlon Alberto Weichert lembra que as decisões da Corte Interamericana são respaldadas, ainda pela Convenção Americana de Direitos Humanos e com o direito internacional, desde o Estatuto do Tribunal de Nuremberg, em 1945 - "um conjunto de normas internacionais que vinculam os Estados e agentes".
 
Com isso, as esperanças para outros julgamentos internacionais são enfraquecidas. 
 
CIDH julgará chacina da Polícia
 
Um caso semelhante ao da região de Osasco e Barueri está pendente de julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). É a chacina na favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1994, quando 13 pessoas morreram com tiros na cabeça durante uma invasão da Polícia Civil. 
 
De acordo com o procurador regional, muito provavelmente o caso será julgado em 2016 pela CIDH. Os mais de vinte anos foram o tempo necessário para todos os procedimentos na Corte internacional. 
 
"Se o sistema interno falha ou demora, as vítimas podem levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos", diz o procurador. Esse é um dos mecanismos possíveis para se colocar em cheque a impunidade da violência policial no Brasil, no qual qualquer cidadão pode requisitar o apelo jurídico. Confira, a seguir, o passo-a-passo:
 
Arte: Angélica Pinheiro / Jornal GGN
 
Diante de todas as fragilidades, sejam de obstáculos herdados pela história da ditadura brasileira ou de condicionantes judiciais que perpetuam na Constituição e no Supremo Tribunal, o procurador conclui que a mudança só pode partir de uma reforma no sistema, por meio do debate entre a sociedade.
 
"Não avançamos em termos de policiamento desde a Constituição, pelo contrário, temos regredido no ponto estrutural. Sem uma discussão realmente abrangente sobre o papel da polícia brasileira e por que ela não atende a nenhum interesse legítimo atual, nós não vamos a lugar nenhum. Não adianta federalizar cinco, dez, quinze, vinte ou trinta crimes. Sem trabalhar com a estrutura, o dia-a-dia, a razão de ser e o modo de atuar da polícia, nós estamos fadados a repetir chacinas, e mais chacinas, e mais chacinas", finalizou.
 

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Acessado e disponível na Internet em 08/09/2015 no endereço - 
http://jornalggn.com.br/noticia/policia-de-hoje-so-e-boa-para-o-crime-organizado-diz-procurador#.Ve7CfQLCZ6Q.email

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Como a PM paulista tornou-se máquina de assassinar jovens


Como a PM paulista tornou-se máquina de assassinar jovens

De repente, a força tarefa montada para apurar a chacina de Osasco – na qual 19 jovens foram assassinados - foi atropelada pelas investigações da Polícia Militar (PM).
A maior suspeita era de PMs envolvidos.
As investigações da PM atuaram em duas frentes: para atrapalhar os aspectos materiais e para comprometer os aspectos formais da investigação.
Na primeira frente, atrapalharam a colheita de provas e expuseram nomes de testemunhas. A partir do vazamento, todas elas passam a ser juradas de morte.
Na frente formal, caso as investigações levem a nomes de policiais de menor patente, com toda certeza serão anuladas nos tribunais superiores, já que crimes de morte só podem ser investigados pela Polícia Civil (PC). À PM cabe apenas investigar infrações administrativas.
Escancara-se, assim, um dos grandes desafios nacionais, que mais cedo ou mais tarde teria mesmo que ser encarado: o do enfrentamento do poder paralelo incrustado nas PMs, cuja manifestação mais trágica é a extraordinária taxa de letalidade nas suas ações. Em muitos lugares – especialmente em São Paulo – a PM tornou-se uma máquina feroz de assassinar jovens de periferia, escudada na mais absoluta impunidade.

O papel dos P2

Os problemas da PM começaram quando transformaram o P2 em agentes policiais.
Os P2 são uma espécie de polícia judiciária, responsáveis por levantar as infrações disciplinares e propor correções de rumo à polícia. Os PMs usam fardas, os P2, não. Os PMs são cidadãos comuns; os P2, os PMs de confiança.
Gradativamente houve uma alteração na sua atuação, conforme se contará mais à frente, tornando-se a linha de frente das operações extralegais da PM, como agentes de confiança do oficialato.
Essa máquina de assassinato foi montada de forma gradativa.
Na década de 70 consolidou-se a imagem da PC corrupta e da PM violenta. Vem de lá os conflitos entre as duas polícias.
Na linha de frente, os conflitos se manifestavam no próprio atendimento policial. O PM prendia o suspeito, levava para a delegacia e lá havia a primeira frente de conflito.
Há duas espécies de policiais civis.
O policial sério é garantista – isto é, não está lá meramente para apurar culpas, mas para apurar a verdade. Ele precisa seguir o Código de Processo Penal (CPP), requisitar laudos e perícias. Já a PM não se prende a códigos e busca culpados.
Além disso, não havia interesse em fortalecer a PC, porque a própria PM pretendeu desde sempre controlar o ciclo completo da apuração do crime. No passado, houve inúmeros casos de efetivos da PM cercarem delegacias para fazer valer a vontade do oficial, exigindo flagrante em determinados casos, contra a opinião do delegado, que não via motivos para tal.
O problema maior surgiu com a segunda espécie de policial civil, o corrupto.
Ainda na década de 70 a PM deu-se conta de que prendendo o contraventor e entregando-o em uma delegacia - em geral ligado ao jogo de bicho e ao bingo - apenas valorizava a corrupção da PC.
Talvez por efeito-demonstração, as companhias da PM que atuavam na região da Santa Ifigênia começaram a praticar venda de segurança. Havia reuniões formais entre os capitães e comerciantes. Os oficiais alegavam que o Estado não tinha verbas. Os comerciantes montavam então uma associação incumbida de recolher recursos para financiar os PMs. Foi o início de um modelo que se expandiu para outras regiões da cidade e deu início ao crescente mercado de segurança, dominado por companhias de propriedade de oficiais da PM.
Hoje em dia, é comum a venda casada de segurança por essas empresas. Tipo, se a contratarem garante-se pelo menos duas vezes por dia a presença de viaturas da Rota transitando pela região.

A segurança de quem pagava

A venda de segurança começou a dar na vista, porque regiões e cidadãos passaram a ser divididos entre os que podiam e os que não podiam pagar.
Para administrar a opinião pública, a maneira encontrada por setores da PM e das companhias de segurança foi a criação de grupos de extermínio.
Se surgiam problemas em determinada região, mandavam um esquadrão na calada da noite que executava meia dúzia de pessoas, quadrilheiros ou não. A ação servia para alertar os quadrilheiros: mudem-se! Para a população, passava a ideia de guerras de quadrilha.
Aos poucos, o modelo de execução foi sendo aprimorado.
Quando surgem problemas em determinadas regiões nobres, os grupos de segurança privada combinam entre si e aquele de outra região vai até o local, procede à matança e à desova dos corpos em outro lugar.
Esse mesmo procedimento passou a ser adotado por setores da PM.
Quando precisa matar alguém, setores da PM valem-se de três equipes. A primeira, executa as vítimas. A segunda, vai até o local e esconde as provas. A terceira comparece para registrar o crime.
A eficácia do modelo é assegurada por dois instrumentos.
O primeiro, o sistema de gestão avançado, que permite programar a ida ou retirada de policiais da área. Se um grupo de extermínio planeja uma ação em determinada área, basta acionar o sistema para tirar o policiamento do entorno do alvo.
O segundo é a falta de uma polícia técnica independente. O Instituto Médico Legal não tem verba própria. Depende da Polícia Civil, porque até hoje não foi instituída uma polícia científica, conforme preconizado pela Constituição.
No geral, os PMs desenvolvem laços de compadrio com médicos. De posse da escala de médicos, é fácil identificar aqueles menos exigentes nos laudos.
Os crimes de maio de 2006 só cessaram quando médicos do Conselho Regional de Medicina correram para o IML (Instituto Médico Legal) para acompanhar as autópsias. É nesse momento que aparecem as provas mais objetivas que podem levar ao criminoso.

Os crimes de agosto

Não foi por acaso que Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) exigiu providências do governo brasileiro tão logo foram divulgadas as notícias sobre a chacina de Osasco. Nos organismos internacionais, há consenso de que as autoridades públicas perderam o controle sobre as PMs.
A primeira atitude do Secretário de Segurança Alexandre de Moraes foi a constituição de um grupo de trabalho de 50 pessoas, entre policiais civis e procuradores estaduais visando apurar os crimes. Não incluiu ninguém da PM. Parecia que, pela primeira vez, seria rompida a blindagem.
Quando a PM colocou seu bloco na rua, o Secretário calou-se. Dele não se ouviu mais nenhuma palavra, nenhuma declaração.
A chacina de Osasco tornou-se um divisor de águas. Nos próximos dias se saberá onde reside o poder de fato em São Paulo: se no Palácio Bandeirantes ou se no quartel da PM.
Dessa resposta dependem centenas de rapazes de periferia que serão executados nos próximos meses, caso o governo de São Paulo atue de forma pusilânime.

Acessado e disponível na Internet em 04/09/2015 no endereço -