O CICLO COMPLETO DE
POLÍCIA JUDICIÁRIA
*Juvenal
Marques Ferreira Filho
O sistema de segurança pública adotado no
Brasil é seccionado entre várias polícias com atribuições especificadas no
artigo 144 da Constituição Federal. No entanto na prática as ações
desenvolvidas pelas instituições e corporações policiais, mormente no âmbito
estadual, se confundem. O policiamento ostensivo está definido como atribuição
da Polícia Militar, enquanto as ações investigativas para apuração de crime são
de atribuição da Polícia Civil. O chamado ciclo incompleto de polícia tem
gerado atritos entre as polícias estaduais, uma vez que ambas acabam por
desenvolver formas de policiamento com invasão na área de atuação uma das
outras. Assim a polícia militar mantém pelotões de investigação para depois
efetuar o patrulhamento direcionado para as áreas investigadas para a produção
de flagrantes, enquanto a polícia civil mantém equipes uniformizadas também com
ações direcionadas a impedir a ocorrência de determinados crimes, como as
equipes de combate ao roubo a bancos e os grupos especializados (GOE) para o
enfrentamento com o crime organizado, onde o armamento utilizado geralmente é
de uso restritivo das forças armadas com alto poder de fogo. Aliás quando a
polícia civil realiza o policiamento ostensivo o faz de maneira muito mais
dinâmica e efetiva do que a Polícia Militar, onde a cadeia hierárquica truncada
faz com que, além dos policiais militares empregados no ostensivo, tenha
necessariamente uma supervisão por sargentos, que por sua vez são
supervisionados por um oficial. As equipes especializadas da Polícia Civil
realizam o policiamento ostensivo especializado com menos homens, menos
despesas e a mesma efetividade da PM. Diante desse quadro de atrito,
competitividade e falta de identidade das polícias estaduais surgiu à tese do
ciclo completo de polícia. No entanto, de maneira equivocada alguns pseudo
especialistas em polícia têm pregado a implantação do ciclo completo de polícia
com o direcionamento para aumento de atribuições da Polícia Militar, conforme a
incidência penal. Na linha doutrinária desses “especialistas”, dependendo da
incidência penal, a Polícia Militar atenderia e implementaria as providências
até o final da ocorrência, inclusive as providências de natureza judiciária,
portanto usurpando as funções da polícia civil, para a qual não tem preparo,
sem se reportar a Autoridade Policial. Ora a divisão de atribuições já está
prevista na Carta Magna, no entanto, o que temos visto é que na prática isso
não funciona. A desorganização do aparelho policial do Estado Brasileiro é
patente, enquanto o crime organizado se expande em escalada assustadora, não só
pela força do material bélico empregado, logística, ações cada vez mais
ousadas, da corrupção diante de polícias mal pagas, mas também pela preparação,
inclusive com custeio de curso superior, para a infiltração de agentes dessas
organizações criminosas nos três Poderes da República.
O ciclo completo de polícia pressupõe
uma única polícia com a atribuição da execução do policiamento urbano e combate
as diversas formas de criminalidade com a repressão adequada, quer nos crimes
comuns como também no crime organizado. Para o sucesso nessa empreitada a
polícia tem que desenvolver ações organizadas no policiamento ostensivo perfeitamente
integrada com ações de inteligência, não somente para minimizar a incidência
criminal, como também para a efetiva investigação com a colheita de provas para
a persecução penal a ser desenvolvida pelo Ministério Público. O crescimento e o aperfeiçoamento do crime
organizado não permitem mais ao Estado Brasileiro o amadorismo em ações de
Segurança Pública.
Efetivamente a solução para a crise de
Segurança Pública no Brasil passa pelo Ciclo Completo de Polícia Judiciária com
o desenvolvimento de ações minimizadoras da incidência criminal, uma vez que
supressão total do crime é utopia. Ações de inteligência para o direcionamento
do policiamento ostensivo, bem como a efetiva investigação dos crimes perpetrados
com a identificação do agente criminoso e colheita de prova para a
instrumentalização da persecução penal por parte do Ministério Público fecham o
ciclo completo de polícia. Esse mister somente pode ser realizado por uma
polícia judiciária atuando com atribuição unificada e integrada no combate ao
crime. As polícias civis estaduais têm plenas condições de realizar esse papel,
até porque sua formação profissional é exclusivamente para o combate ao crime,
sem qualquer doutrina estranha ao ideal de defesa da sociedade civil com
respeito ao estado de direito vigente.
A Polícia Militar tem formação e
doutrina militar cujo objetivo é por excelência a neutralização e, quando
necessário o abate do inimigo, com ações táticas de enfrentamento e destruição
da força opositora. Esse tipo de ação é incompatível com o policiamento civil
para a proteção de uma sociedade democrática com o respeito aos direitos
humanos. Os fatos são incontestáveis, pois que todos os dias eclodem pelo país
inteiro denúncias de abuso de força, tortura e por vezes de morte de civis, perpetradas
por policiais militares no serviço de policiamento civil.
Na grande maioria dos países
desenvolvidos o policiamento diuturno da sociedade é realizado por polícias de
natureza civil e com as atribuições do ciclo completo de polícia, reservando-se
para os confrontos com criminosos violentos e com armamento pesado a atuação de
equipes treinadas com táticas militares e com resposta armada adequada a
agressão criminosa, como realiza a S.W.A.T. americana. Para esse tipo de ação a
atuação da Polícia Militar é de fundamental importância, pois que se requer
nesse tipo de repressão criminosa uma ação policial com tática militar, treinamento,
equipamento e armamento de uso restritivo. O policiamento de choque para
controle de distúrbios civis e de praças desportivas com grande aglomeração de
pessoas, bem como os batalhões especializados em ações de selva e salvamento
são, por sua natureza e exigência de treinamento especializado, uma atribuição natural
e específica para a Polícia Militar que nessa área realiza uma excelente
prestação de serviço para a sociedade.
Nesse diapasão a evolução natural do
aparelho policial brasileiro passa pela atribuição do ciclo completo de polícia
judiciária com a competência legal para as polícias civis estaduais para o
desenvolvimento de ações para a prevenção, com o policiamento ostensivo, a investigação
e repressão ao crime de forma unificada, reservando-se para a Polícia Militar o controle de
distúrbios civis e as operações especiais táticas. Nesse campo de atuação, com
tropa treinada para o policiamento de choque, batalhões de operações especiais para
enfrentamento de confronto armado pesado, ações na área de defesa civil, além do
salvamento em terra e água, a Polícia Militar está perfeitamente qualificada.
Essa tropa com treinamento militar caberá a reserva do Estado Brasileiro para a
defesa interna e territorial funcionando como força reserva do Exército e Força
Nacional de Segurança Pública com atuação específica em situações que ofereçam
risco à segurança nacional.
O modelo proposto é de fácil
implantação, pois que as polícias estão relativamente organizadas com paridade
salarial de cargos nos estados, bastando-se para tanto a redistribuição de
efetivo, equipamento e instalações para a implementação de uma polícia judiciária
com atuação no Ciclo Completo de Polícia Judiciária e a estruturação de uma
Força Pública para utilização em situações de risco de segurança tanto a nível
estadual como nacional.
A implementação legal desse novo
sistema de segurança pública poderá ser implantado através de uma PEC que
promova a alteração do artigo 144 da C.F., modificando-se as atribuições das
polícias estaduais, com previsão nas disposições transitórias para a
redistribuição dos efetivos e das instalações das polícias militares utilizados
no policiamento ostensivo. Dessa forma caberia a Polícia militar a
exclusividade no controle de distúrbios civis, a polícia de operações táticas
especiais e as ações de defesa civil e salvatagem na terra e água. A Polícia
Civil caberia a prevenção, policiamento ostensivo e a investigação e elucidação
de crimes com a competência exclusiva para a formalização dos atos de polícia
judiciária nas infrações de natureza civil. Lei Complementar deverá criar e redistribuir
os cargos necessários para a polícia judiciária com atuação no ciclo completo.
A proposta é factível e não ensejaria
em aumento de gastos pelos Estados, uma vez que se propõe readequar as polícias
já existentes, com a redistribuição de funções, efetivos e material,
implantando-se um novo modelo de aparelho policial do Estado. A Polícia
Estadual com atuação no ciclo completo de polícia judiciária deverá ter uma
estrutura moderna para atuar nas diversas áreas de ações de inteligência,
prevenção uniformizada ostensiva, investigação e formalização dos atos de
polícia judiciária. Para tanto as antigas delegacias agora denominadas
Departamentos de Polícia terão nos seus efetivos policiais treinados e
equipados para atuar no policiamento uniformizado, além de agentes policiais
para atuação específica na área de inteligência e investigação e o corpo de
escrivães para a formalização cartorária dos atos de policia judiciária. As ações de inteligência não se confundem com
investigação. As primeiras dizem respeito ao levantamento de informações para
fundamentar as decisões estratégicas e direcionamento do policiamento a ser
desenvolvido, enquanto o efetivo de investigação atua no caso concreto com a
identificação do agente criminoso e colheita de elementos de provas para a
instrumentalização do Ministério Público. A profissionalização e especialização
de uma única polícia na atuação no ciclo completo de polícia judiciária
importarão inevitavelmente numa substancial melhoria do sistema de segurança
pública em benefício de toda a sociedade civil.
A direção desses Departamentos de
Polícia caberá ao Delegado de Polícia Titular da unidade, a quem incumbirá
supervisionar a atuação dos Delegados de Polícia encarregados de cada uma das
áreas de atuação do Departamento, a saber, o Delegado de Polícia do Setor de Policiamento
Ostensivo; Delegado de Polícia do Setor de Inteligência e Investigação;
Delegado de Polícia do Setor de Polícia Judiciária e o Delegado de Polícia do
Setor de Plantão Policial. Os Departamentos de Polícia manterão uma equipe diuturna,
sob a presidência de um Delegado de Plantão para a lavratura de autos de prisão
em flagrante e termos circunstanciados. O registro de boletins de ocorrências
com a mera notícia de crime será efetuado por funcionários distribuídos nos
Postos de Atendimento e Registro de Ocorrência Policial (PROPOL) localizados em
setores estratégicos a serem determinados pela densidade populacional e
incidência criminal na cidade.
Tendo em vista a complexidade das
atribuições dos Departamentos de Polícia haverá a necessidade de realocação
destes nos prédios públicos remanejados da Polícia Militar (batalhões), uma vez
que o efetivo de policiais e equipamentos necessitará instalações de maior
porte. No entanto, com a realocação dos edifícios ocupados pelos batalhões de
área, o Estado não terá aumento de despesas, pelo contrário, as despesas devem
diminuir uma vez que as características do efetivo policial civil, sem rancho e
barbearia, por exemplo, demandará menos gastos.
O remanejamento do efetivo empregado
pela PM no policiamento ostensivo também não oferece dificuldade. Os soldados
viriam como guardas civis, nível I – estágio probatório e nível II – efetivados
com até 15 anos; os praças graduados cabos, sargentos e subtenentes teriam por
designação o cargo de Inspetor de Polícia nível I, II, III e Especial para o final
da carreira. A promoção dos Guardas civis de nível II será automática para
Inspetor de Polícia nível I, decorridos 15 anos de carreira no bom
comportamento. As promoções dos Inspetores de Polícia, de acordo com o número
de vagas abertas, serão baseadas na proporção de 50% pelo critério de
antiguidade, e, 50% por concurso interno, sendo automática a cada 10 anos de
efetivo serviço no cargo sem punição.
Os oficiais da PM empregados no
policiamento ostensivo e que optem pela transposição para a Polícia Judiciária
assumirão os cargos de Delegados de Polícia, com os níveis correspondentes às
suas patentes anteriores, com a atuação específica na supervisão do setor de
policiamento ostensivo, com as prerrogativas e atribuições do Delegado de
Polícia Judiciária.
Isto posto, evidencia-se que com uma
reengenharia do atual modelo policial brasileiro há condições de se prestar um
serviço de segurança pública com inegável melhoria para a população, sem os
atritos e os desvios de função que oneram as polícias estaduais no sistema
atual. Para tanto não se faz necessário aumento de efetivo ou de despesas, mas
tão somente uma mudança do sistema atual, já ultrapassado e não condizente com
o Estado de direito vigente, onde não há mais espaço para o cerceamento de
liberdades por instituição militar. A restrição de liberdades civis só é
possível dentro da lei e por órgãos civis do Estado. Aos militares cabe tão
somente a defesa do Estado brasileiro contra agressão externa, e,
excepcionalmente contra ação por agentes internos na forma da lei.
A necessária modernização das polícias
brasileiras no combate ao crime comum e organizado, deve se pautar pelos ditames
da lei, com respeito aos direitos humanos, como o fazem a grande maioria das
instituições policiais de países desenvolvidos, onde não existe a figura
militar.
O Ciclo Completo de Polícia Judiciária
representa a única saída possível, do atual estado de incompetência das
polícias estaduais para enfrentamento do crime e oferecimento de uma segurança
pública efetiva. A exposição de motivos esplanada demonstra a viabilidade
operacional e financeira na reengenharia do atual modelo do aparelho policial
estatal. Basta vontade política e compromisso com a sociedade brasileira para a
implantação das mudanças necessárias.
Julho de 2010.
*
O autor é bacharel em direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos.
Ingressou na carreira policial em 1980 como Soldado da Polícia Militar de São
Paulo, onde alcançou a graduação de 2º Sargento. Em 1989 assumiu o cargo de
Investigador de Polícia, tendo exercido a função até aprovação no concurso para
Delegado de Polícia em 1994. É autor de vários artigos relacionados à Segurança
Pública publicados em páginas de diversos sites na Internet. Contato por e-mail:
juvenalmarques2010@gmail.com .
ANEXO
EMENDA CONSTITUCIONAL
CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
CONGRESSO NACIONAL
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº
__
Modifica o Sistema de
Segurança Pública nos Estados, estabelece normas e dá outras providências.
As
Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art.60
da Constituição Federal, promulgam esta Emenda ao texto constitucional:
Art. 1º - O artigo 144 e seus §§ 4º e 5º da
Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:
“Art.
144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade
de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos que integram o Sistema
Nacional de Segurança Pública:
I - ...........................................
IV - polícias
judiciárias estaduais;
V - polícias
militares e corpos de bombeiros militares.
§ 4º - às
polícias judiciárias estaduais, dirigidas por delegados de polícia de carreira,
exercem com exclusividade, ressalvada a competência da União, as funções de
polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, bem
como o policiamento ostensivo e as ações necessárias para a prevenção e
repressão ao crime.
§ 5º - às
polícias militares cabem a preservação da ordem pública no controle de
distúrbios civis, policiamento em praças desportivas e as ações de operações
especiais em situações de alto risco, além da manutenção dos corpos de bombeiros
militares e a execução de atividades de defesa civil, sendo a base da Força
Nacional de Segurança com as atribuições definidas em lei.
Art.2º - Insere o § 3º no artigo 89 nas
Disposições Transitórias da Constituição Federal com a seguinte redação:
§
3º - Os Estados disciplinarão
em lei complementar as redistribuições dos equipamentos, materiais e imóveis da
Polícia Militar para a Polícia Judiciária Estadual, bem como os efetivos policiais
necessários para o policiamento ostensivo, garantido o direito de opção para os
policiais militares para remanejamento para quadro em extinção, para a
reestruturação dos órgãos policiais para o cumprimento do dispostos nos
parágrafos 4º e 5º do artigo 144.
Art. 3º - Esta
Emenda Constitucional entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua
promulgação.
Brasília, x de
x de 201x
Mesa da Câmara dos Deputados
Mesa do Senado Federal