MENSAGEM

"Eu não recearia muito as más leis se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação. A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 17 de março de 2015

Audiência de custódia à brasileira

Diego Dutra Goulart: Audiência de custódia à brasileira



Após iniciativa do TJSP iniciou-se na semana passada em São Paulo a audiência de custódia. Referida iniciativa tem por alegado escopo disciplinar tratado internacional, mas é incompatível com o nosso ordenamento jurídico.
O tratado internacional em questão é a Convenção Americana de Direitos Humanos. Ela diz que "toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)". O texto não fala em audiência, em prazo de 24 horas e, muito menos, em encaminhamento necessário ao juiz.
Atualmente, a pessoa ao ser presa em flagrante tem sua detenção comunicada imediatamente ao juiz, ao Ministério Público, bem como à família e, em até 24 horas após a realização da prisão, é encaminhado ao juiz o auto de prisão em flagrante, seguindo cópia à Defensoria Pública, caso não seja indicado advogado (art. 306, CPP).
Portanto, qualquer violação a direito do preso já é verificada pelo defensor e pelo delegado de polícia, a quem o preso apresenta a sua versão sobre os fatos. Ademais, em até 24 horas, o juiz já avalia não só a versão do preso, mas também todos os pedidos da defesa, decidindo se a pessoa detida deve ficar presa ou se pode ser solta aplicando-se medidas alternativas. Então, o que muda com a audiência de custódia?
O provimento do TJSP diz que o preso deve ser apresentado ao juiz para tratar de "circunstâncias objetivas" (não relacionadas ao mérito). Desse modo, passaremos a ter um interrogatório feito pela autoridade policial no qual o custodiado apresenta a sua versão para os fatos. Na sequência, ainda no prazo de 24 horas, o preso segue para audiência com o juiz para tratar de questões "objetivas" (por exemplo, para dizer se foi agredido ao confessar).
Nos países em que se adota a audiência de custódia (ou o equivalente) há duas grandes diferenças: não há interrogatório policial nos moldes que nós temos e o preso deve ser apresentado ao juiz para apresentar a ele a sua versão dos fatos (e não apenas para falar de questões objetivas). Ademais, nos outros países o preso não é encaminhado ao juiz do caso, mas sim a um "outro juiz", que atua apenas na fase de investigação.
A existência desse "outro juiz" (de instrução ou de garantia) é essencial. Isso porque tudo o que preso em flagrante disser, caso se dirija ao seu julgador, sem conhecer as provas que servirão de base à acusação, poderá resultar em seu prejuízo.
Agora, em São Paulo, o preso dará a sua versão dos fatos ao delegado de polícia e será deslocado ao fórum (com destacamento de viaturas e policiais) para, na presença do juiz, falar apenas sobre "questões objetivas" de sua prisão. O Brasil talvez seja caso único em que se tem a figura do delegado de polícia. Nos outros países, é o Ministério Público que realiza a investigação e o preso é encaminhado somente ao juiz, apresentando a ele toda a versão dos fatos.
É isso que precisamos decidir. Ou se aceita este modelo com interrogatório e demais atos judicias praticados pelo delegado de polícia (como a previsão legal para a concessão de liberdade provisória) ou dever-se-ia iniciar debate para a modificação do nosso sistema pré-processual penal (seguindo-se a regra mundial, com a extinção do inquérito policial, a investigação criminal presidida pelo Ministério Público e controle realizado pelo juiz).
O que não pode é continuarmos com constante desconfiança do Estado ao trabalho da polícia e com "remendos" a um sistema que aparentemente não é bem aceito.
A audiência do preso em flagrante com o juiz da causa (embora, na fase de implantação da audiência, o TJSP estabeleça que ela será feita por juízes "designados" e não pelo juiz da causa), resulta em modificação tópica sem efetividade, inclusive ao controle da legalidade da prisão.
Vê-se, assim, que a audiência de custódia à brasileira é, em verdade, mais uma tentativa de controle da atividade policial que apenas nos conduz a um ordenamento burocrático, moroso e disfuncional.
DIEGO DUTRA GOULART é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e bacharel em direito pela PUC-SP

Acessado e disponível na Internet em 17/03/2015 no endereço - 
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/03/1603586-diego-dutra-goulart--audiencia-de-custodia-a-brasileira.shtml